1.1 - INTRODUÇÃO
Moral é um
conjunto de regras no convívio. O seu campo de aplicação é maior do que o campo
do Direito.
Nem todas as regras Morais são regras jurídicas. O campo da moral é mais amplo.
A semelhança que o Direito tem com a Moral é que ambas são formas de controle
social.
1. 2 - A MORAL NA SOCIEDADE HUMANA E
RURAL
A moralidade
da sociedade contemporânea assume hoje uma dimensão inversamente proporcional à
sua visibilidade discursiva. Parece que quanto mais se fala em ética e moral,
mais escandalosamente imorais se tornam as práticas. O discurso moralizante
nasce, de um lado, da justa revolta das vítimas da barbárie moral e, de outro, do
cinismo dos protagonistas da imoralidade. Comum aos dois aportes é a tendência
de culpabilizar os outros, sejam eles indivíduos, grupos ou instituições. No
presente trabalho, quero defender o ponto de vista de que a barbárie moral que
vivemos não se explica nem se soluciona culpando o outro e exigindo que ele
mude seu comportamento. As raízes da imoralidade são muito mais profundas e
alcançam o terreno comum da tradição e da cultura. Por isso, entendo que a
superação da barbárie moral não pode ser alcançada mediante intervenções e
sanções tópicas, locais, superficiais, mas que é necessário um repensar amplo e
corajoso dos arquétipos de nossa cultura, no que se refere aos conceitos de
cidadania, democracia, justiça social e espaço público. Tal projeto deve
relacionar a nossa tradição cultural e os valores a ela inerentes com o
contexto moralmente perverso do modo de produção capitalista neoliberal que nos
governa no momento. As perplexidades e ambivalências ético-morais precisam ser
entendidas e analisadas a partir da confluência das características e tradições
de nossa cultura com o modo de produção e os referenciais e representações
ético-morais que lhe são próprias. Estes dois aportes – a tradição cultural e a
realidade econômico-política – representam as vertentes cínicas das quais nasce
a imoralidade que barbariza nossas relações sociais. Imoralidade essa que ora
gera revolta, ora não provoca mais que indiferença e conformismo.
Os amplos traços desse cenário assumem contornos mais nítidos se
focarmos o olhar sobre alguns aspectos mais tópicos. Assim, apesar de todas as
promessas e expectativas de progresso e de solução dos problemas humanos,
formuladas no início da modernidade (Kant, 1969), uma grande parte da população
mundial continua faminta, analfabeta, doente e moribunda. Isso ocorre num
momento em que já existem os recursos técnicos e econômicos suficientes para
reverter esse quadro. Após o "desencantamento" do mundo medieval
(Weber, 2005, p. 49), ordenado pelo modo divino, a modernidade assume a instituição
da ordem como criação humana. "A existência é moderna", diz Bauman,
"na media em que é produzida e sustentada pelo projeto, manipulação,
administração, planejamento" (1999, p. 14). Foi no interior desse projeto
que germinou a profunda ambivalência entre o avanço científico-tecnológico que
ensejou a abundância de bens culturais e materiais e a miséria, o atraso, a
carência de milhões de pessoas. Dessa condição fundante de exclusão que, para
muitos, é inerente ao sistema político/econômico vigente, decorre a pergunta a
respeito da natureza moral desse sistema.
A contradição entre a abundância e a miséria gera um ambiente de
barbárie que violenta as relações em todos os espaços da vida: na família, na
escola, nas ruas, nas empresas, nas relações internacionais. Em todos esses
âmbitos observa-se uma incrível banalização da vida porque a vida é demais. A
partir da modernidade, a plenitude da vida já não deveria ser buscada na
transcendência, mas na imanência. Ora, se o sentido da vida se esgota na felicidade
terrena e se esta não puder ser alcançada senão por alguns, a vida (pelo menos
para muitos) perde o sentido e não merece ser respeitada como valor.
A falta de trabalho exclui multidões da atividade laboral, que é
precisamente o processo constituinte do ser humano (Pochmann, 2004). O
desemprego fere o homem em sua essência, pois agride a humanidade do ser
humano, impedindo-o de participar condignamente da construção de sua própria
identidade. Ironicamente, o autor do desenvolvimento e do progresso é excluído
e condenado a uma violenta e agressiva competitividade que não só legitima a
agressão e a eliminação do outro, mas se transforma numa das mais excelsas
virtudes do nosso tempo.
A agressão ao meio ambiente gera uma vulnerabilidade de proporções
inusitadas que ameaça a sobrevivência da própria humanidade. A poluição da
água, do ar e da terra, bem como a poluição visual, a sonora e a olfativa, são,
todas elas, conseqüência da intervenção irresponsável sobre o meio ambiente,
que pode ter efeitos terminais, conforme alertam os cientistas de todo o mundo.
O mesmo se aplica à manipulação genética, ao uso de hormônios, ao emprego de
insumos químicos, visando o lucro rápido sem considerar as conseqüências de
longo prazo.
As doenças, epidemias, vírus, gripes se disseminam
vertiginosamente pelos caminhos rápidos (até mesmo eletrônicos) que ligam povos
e culturas. Os que dispõem de recursos constroem barreiras, criam anti-vírus,
conseguem proteger-se, enquanto os demais definham, morrem. Parece claro que os
frutos do trabalho social, materializados no conhecimento, favorecem mais a uns
e menos a outros.
A vergonhosa onda de corrupção que se abate, cínica, perversa e
espetacularizada, sobre o espaço público, gera uma reação de repúdio talvez sem
precedentes no país. Para além dos casos específicos de imoralidade pública,
aparece no horizonte a ameaça da falência das instituições sociais ante o
fenômeno de miscegenização entre o público e o privado, que ameaça os próprios
fundamentos do estado de direito.
Resumindo estes itens, aos quais poderiam ser acrescentados tantos
outros, pode-se dizer que estamos vivendo um domínio sem precedentes da razão
instrumental e utilitarista (Adorno, 1985), para a qual os fins justificam os
meios. Conceitos como eficiência, eficácia, lucro, domínio e vantagem assumem
posição central nas relações humanas da sociedade contemporânea. O princípio da
performatividade, do bom funcionamento, torna-se o critério de avaliação das
ações individuais e coletivas. Com isso, a sociedade capitalista neoliberal
assume diretrizes morais que invertem o imperativo da ética kantiana, não
apenas permitindo, mas condicionando o bom funcionamento do sistema ao uso do
homem como meio.
São esses cenários preocupantes e desoladores que provocam esta
verdadeira explosão do debate moral que ecoa o tempo todo nas famílias, nos
espaços políticos, na Igreja, na universidade e na escola. A grande pergunta
que se coloca ao homem e à sociedade contemporânea, do ponto de vista moral, é
como encontrar uma resposta à pergunta: O que significa 'tu deves'? Em outros
termos, como podemos encontrar novos fundamentos para o dever.
Se, na condição de educadores morais, dissermos ao aluno 'tu
deves' e ele perguntar 'porque devo', qual a resposta que lhe daremos? Os
gregos argumentaram que 'devemos' por causa do Bem e da destinação natural do
homem para o Bem. Os cristãos medievais acreditaram que 'devemos' por mandato
de Deus.
Os modernos argumentam que o dever se baseia na razão. Desde então, as
respostas são muitas e variadas. De modo geral, associa-se o dever à condição
de sobrevivência ou à conquista da felicidade. Mais recentemente, os
pós-modernos (Lyotard, 1985; Lipovetsky, 1989; Bauman, 1997; Vattimo, 1996)
anunciam o fim do dever nos moldes tradicionais e proclamam que as formas de
comportamento devem ser decididas no contexto, nas circunstâncias.
Esta resposta se relaciona à natureza da sociedade contemporânea
que se encontra em rápidas transformações; uma sociedade em que tudo o que é
estabelecido logo se desfaz; uma sociedade em que tudo se centra nos interesses
do indivíduo; uma sociedade em que o privado se sobrepõe ao público; uma
sociedade em que as possibilidades de influência e manipulação da natureza, do
ser humano e da vida assumem dimensões assustadoras.
São essas perplexidades que estão na raiz da grande visibilidade
que alcança o discurso moral hoje. As pessoas sentem-se órfãs de parâmetros de
comportamento. Os mais jovens, vivendo o espírito da época, são contrários a
qualquer tipo de autoridade. Os adultos sentem-se inseguros, des-autorizados,
sem saber o que dizer aos jovens. Serão corriqueiros o assombro e a
desorientação das pessoas diante do futuro da sociedade se prosseguirem as
práticas que afrontam qualquer sentido de bem comum, de justiça social. Por
vezes, as pessoas parecem cansadas de lutar por uma sociedade melhor diante das
dimensões assustadoras da barbárie; preferem desistir, encerrar-se na sua
privacidade, abandonar o político, desestimuladas pela sensação de impotência
perante as intermináveis séries de abusos que se sucedem diante de seus olhos.
Embora seja compreensível, essa atitude encerra o grande risco de deixar o
campo livre para que as contravenções sejam toleradas como uma rotina
inevitável, contra a qual não há o que fazer. Penso que a luta em defesa de uma
sociedade livre e justa não pode ser abandonada e acredito que à educação cabe
um papel importante nessa tarefa.
1.2.1 - Quais os objetivos da educação moral?
Como já foi dito anteriormente, o modelo de um ordenamento moral
de princípios e de regras estáveis pertence ao passado. Hoje, tudo está em
permanente tansformação: o que valeu ontem pode não valer hoje e o que vale
hoje pode não servir amanhã; o que é tido como certo num determinado contexto
cultural pode não ser correto em outro. Impõe-se o entendimento de que os
princípios e as regras universais perdem sua força a favor de novas convenções,
que dependem dos contextos culturais. Pode-se dizer que se ampliam e
flexibilizam os limites dos sentidos e, com isso, os limites do sujeito e do
mundo. Como na arte, a vida parece ser uma permanente renovação de regras e de
preceitos.
O contexto contemporâneo de paulatina desconstrução dos valores e
normas tradicionais exige outras formas de legitimação. Pressupondo, como
parece plausível, que os homens não conseguem conviver pacificamente sem normas
que regulamentem suas condutas e sabendo, também, que tais normas não podem ser
deduzidas de princípios transcendentais, é necessário dar-lhes legitimidade com
base em outro procedimento. Já no início da época moderna, Rousseau (2007),
Hobbes (2006) e Hume (1995) propuseram a idéia do contrato social. Mais
recentemente, Habermas (1989) e Rawls (1993) sugerem a idéia de consenso a ser
encontrado mediante o diálogo. Este novo procedimento de legitimação tem consequências
consideráveis tanto para o sujeito que simplesmente cumpre normas, quanto para
aquele que exige o cumprimento de normas. Para o primeiro não é suficiente
obedecer cegamente às normas, porque, desde a modernidade, o sujeito moral
assume a corresponsabilidade pela legitimidade das normas. Se, na moral
tradicional, Abrahão podia matar seu filho sem incorrer em crime porque
obedecia a Deus, a partir da modernidade, mesmo obedecendo a Deus, Abrahão
seria criminoso, porque o argumento da autoridade não mais o isentaria da
responsabilidade pelo homicídio. De outra parte, para o educador não é
suficiente exigir obediência em nome de alguma autoridade: ele precisa tornar
plausível a legitimidade das normas. No primeiro caso, é necessário responder à
pergunta em nome de quem se obedece e, no segundo, em nome de quem se exerce a
autoridade moral. Exige-se, portanto, um elevado nível de consciência e de
responsabilidade. Hoje, é necessário dar voz à vida do indivíduo e da
comunidade em meio ao calor e à fragilidade da realidade. A linguagem evocativa
é substituída por uma linguagem palpitante, que tenta dizer o que nunca foi
dito, que busca abrir trilhas em meio a cenários nunca antes visitados. A todo
instante mudam os cenários na biologia, na medicina, na genética, na
comunicação, na política, na economia, gerando sempre novos desafios para a
reflexão ética e, consequentemente, para as decisões e ações morais.
Esse deslocamento dos fundamentos da moralidade do céu para a
terra, da transcendência para a imanência, tem enormes implicações para
qualquer projeto de formação moral. No bojo dessa reviravolta, ocorre a
passagem da visão providencialista e fatalista da história para uma visão
puramente humana e histórica. Com isso, dissolve-se a fonte que legitimava a
educação moral tradicional e perde força o argumento da autoridade em nome do
qual se exigia submissão e obediência. Encontramo-nos em meio a essa passagem,
com os olhos ora voltados para o passado, ora para o futuro, entre a saudade e
a esperança, vivendo intensamente as ambivalências de um mundo em
transformação.
Ao tempo em que as mudanças ocorriam de forma mais lenta, o homem
tinha condições de olhar para o passado e ver nele espelhados o presente e as
expectativas de futuro, de modo que tinha como orientar-se, sentir-se seguro,
em relação ao curso dos acontecimentos. Nesse contexto de estabilidade,
justificava-se uma educação moral baseada no argumento da autoridade, que
exigia sujeição e obediência ao conjunto de normas e valores aceitos por todos.
A educação moral consistia na repressão dos desejos e instintos e na
incoporação do ethoslegitimado pela tradição. Hoje,
as tradições se encontram sob suspeita, perderam sua força orientadora e não
oferecem mais amparo e segurança diante de um futuro inseguro e imprevisível.
Essa condição cultural tem decisivas conseqüências para a formação
moral das pessoas. De um lado, como vimos, a educação moral nos moldes tradicionais
da adaptação a um código ético de traços universais e permanentes já não é
possivel. De outro, pela dissolução das referências, o homem corre o iminente
risco de submergir na mudança, de ser envolvido, absorvido e levado pelo fluxo
da existência, sem conseguir assenhorear-se do seu próprio caminho e destino.
Para que isso não ocorra e para que não impere a lei do mais forte, são
necessários códigos de conduta, normas e valores que devem ser respeitados por
todos. É o preço da condição humana: a liberdade de todos exige o limite da
liberdade individual. Apesar das teses que falam do fim dos valores
(Lipovetsky, 1989), dos tempos líquidos (Bauman, 1999), as permanências, as
referências, as normas e valores são condições necessárias da vida humana. Não
há sociedade humana nem convivência ordenada e pacífica sem um código de
direitos e deveres, orientador da coexistência dos indivíduos. O que ocorre é
que este código não é mais indelével, permanente e universal, mas histórico, ou
seja, sujeito a transformações e mudanças que acompanham as condições materiais
e culturais da sociedade. Essa ambivalência entre a permanência e o fluxo,
entre a tradição e o porvir, entre o ser e o vir-a-ser é o centro da paideia contemporânea.2
Nesse cenário, a tarefa da educação moral coloca-se numa nova
perspectiva de formar um sujeito moral, portador de uma consciência crítica que
lhe permita uma permanente percepção e avaliação da pertinência dos códigos,
normas, tradições, na perspectiva da liberdade e da justiça. A liberdade é
condição seminal de qualquer moralidade, uma vez que sem liberdade não há
decisão nem ação moral, e justiça é condição antropológica do ser humano como
ser social, que precisa encontrar formas de convivência em que direitos e
deveres se equilibrem. Por isso, formar sujeitos morais não significa, pelo
menos não significa apenas, transmitir esse ou aquele valor, exigir esse ou
aquele comportamento, mas contribuir para tornar o indivíduo um sujeito
crítico, político, reflexivo. Compete ao professor despertar nos seus alunos o
desejo de ser um sujeito moral. Esse é fundamentalmente um processo dialógico,
argumentativo, de convencimento. Ninguém pode obrigar alguém a ser um sujeito
moral contra a sua vontade, nem mesmo mediante as mais severas ameaças ou
sanções, pela simples razão de que a liberdade é condição sine
qua non da moralidade.
Obedecer às normas, seja por conforto ou temor, é condição suficiente para ser
correto (em conformidade com as normas), mas não para ser um sujeito moral. A
ação moral tem como pressuposto a livre escolha do sujeito. E essa condição de
sujeito moral autônomo não existe a priori, nem pode ser simplesmente
transmitida pela educação: é uma condição que deve ser conquistada e
continuamente fortalecida ao longo de toda a vida. Ajudar nesse intuito é o
sentido e o objetivo da formação moral.
Erigir liberdade e justiça em princípios centrais de um novo
modelo de moralidade implica repensar profundamente a relação entre individuo e
sociedade, estabelecendo novos vínculos que agregam as tônicas fundantes dos
modelos ético-filosóficos da antiguidade e da modernidade, focados, como se
sabe, respectivamente, na justiça e na individualidade. Sociedade e indivíduo
são as duas faces imbricadas de uma mesma realidade social.
O ser humano, por ser dotado de razão, é um ser confiado a si
mesmo, que deve cuidar de si, velar por si mesmo. Dessa premissa ele não pode
abrir mão, sob pena de deixar de ser humano. O sujeito moral só se constitui a
partir do trabalho que faz consigo mesmo como exercício de conquista de sua
liberdade. O estado que o indivíduo deseja é o estado de soberania e
independência de si mesmo, numa palavra, de autonomia com relação a si mesmo,
às coisas e ao mundo. Desse objetivo maior decorre a pergunta a respeito da
conduta ou das regras que devem ser assumidas para alcançar esse estágio de
autonomia.
Combater a imoralidade significa, então, o homem repensar-se como
sujeito moral; repensar-se como indivíduo, em sua história pessoal, nas suas
relações com os outros seres humanos e com a natureza; significa repensar a sua
situação no mundo contemporâneo, o sentido de sua vida presente e futura, as
suas formas de convivência e usos dos outros e da natureza. Mas significa,
também, repensar a sociedade, seus objetivos e ideais, seus valores e normas,
seu sistema jurídico, político e econômico, na perspectiva da convivência digna
e justa. E é no contexto dessa relação entre o individual e o social, como
dimensões fundantes da moralidade, que o conceito de justiça adquire nova e
inarredável centralidade. A justiça é a primeira e mais fundamental virtude do
homem contemporâneo. O eixo dessa nova perspectiva consiste na relação indissolúvel
entre o indivíduo e a sociedade. Restabelecer esse vínculo entre indivíduo e
sociedade, em meio a um contexto cultural em que tal vinculação se apresenta
estremecida, parece-me o objetivo central de educação moral. Não existe o
sujeito moral independente da sociedade e nem a sociedade moral independente do
sujeito moral: ambos mantêm entre si vículos indissolúveis de liberdade e de
justiça. Liberdade é o escopo e justiça sua condição. Nesses termos, não há
liberdade sem justiça e nem justiça sem liberdade.
Se fosse resumir essas considerações, diria que a educação moral
se baseia, em termos de procedimento, no diálogo e na argumentação, e, em
termos de objetivos, na formação do sujeito moral crítico, autônomo e livre,
cujas principais virtudes devem ser a responsabilidade e a justiça. No entanto,
a realização desse objetivo enfrenta, na prática, grandes dificuldades, uma vez
que as tendências hegemônicas nos contextos sócio-cultural-econômico se
orientam em sentido contrário. A seguir, serão apontadas algumas dessas
dificuldades.
1.2.2 A MORAL NA SOCIEDADE RURAL
As discussões e análises da questão ambiental no campo são
abordadas no contexto da reorganização do ambiente rural diante da sociedade
globalizada. Nesse sentido, o tema da ruralidade apresenta-se mediante uma
controvérsia que articula basicamente duas posições: uma aponta para o
desaparecimento de um rural agrícola, face aos processos contínuos de
urbanização e industrialização; outra, para a reconstrução de uma ruralidade
que resgata um mundo da vida rural articulado com valores urbanos.
Para a primeira versão, o rural deixa de ser um espaço que
privilegia a agricultura; é cada vez mais espaço de múltiplas atividades (SILVA, 1998;
SCHNEIDER, 1999). A agricultura caminha para um processo de industrialização ou
de um ramo de atividade industrial, de serviços em geral (GOODMAN, SORJ,
WILKINSON, 199' SILVA, 1996). Nessa perspectiva, é possível deduzir que a terra
perde importância como recurso produtivo à medida que a produção é realizada em
ambientes construídos, como a produção de legumes e verduras em estufas, as
granjas produtoras de aves, as fábrica-fazendas produtoras de leite. Desse
modo, o rural é analisado na perspectiva da reorganização das atividades
econômicas, onde o progresso tecnológico exerce um papel preponderante. Os
recursos tecnológicos da informática e da engenharia genética estariam na ponta
desse processo de transformação. Nesse contexto, o ambiente rural seria
reconstruído na perspectiva de uma sociedade industrializada, onde as
especificidades entre as atividades desaparecem, uma vez que a lógica da
racionalidade técnico-instrumental seria determinante nos processos de
reorganização social.
Para a segunda versão - o da reconstrução da ruralidade - o mundo
rural não deixa de existir para a sociedade. Se por um lado ocorre um
esvaziamento da população no campo à medida que a sociedade se industrializa,
por outro, há uma reconstrução de relações sociais no meio rural mediante
categorias sociais que permanecem no campo e que são valorizadas no contexto de
políticas públicas (WANDERLEY, 2000). Assim, há um número majoritário de
agricultores familiares, cujo processo de organização social e produtiva
reconstrói relações sócio-ambientais que não se baseiam exclusivamente em valores
urbanos. Antes, essas relações são reconstruídas com base em dois universos
tensionados e complementares: o mundo da vida rural, expresso pelo cotidiano
marcante das relações comunitárias no campo, e o sistema urbanizado, que
através de relações de troca mediatiza valores universais com a sociedade.
Nessa perspectiva, embora as comunidades rurais, os núcleos, povoamentos ou
pequenas vilas ou cidades possam ser dotadas de infra-estrutura de lazer,
energia, saneamento e serviços, com características dos centros urbanos, eles
expressam um modo de vida que tem suas raízes no meio rural (WANDERLEY, 1999).
Considera-se ainda que, nos chamados pequenos centros urbanos, atividades como
as de serviços, agroindústria, turismo, ainda têm seus vínculos com a agricultura.
O ambiente rural é reconstruído mediante uma diversidade de
atividades e com processos produtivos que combinam diferentes tipos de saberes
(BRANDENBURG, 1999; WANDERLEY,1989). Ao combinar saberes diferenciados, os
agricultores constróem relações com a natureza que retomam processos de gestão
que fazem uso de recursos naturais e não necessariamente de recursos
industrializados.
Na perspectiva do socioambientalismo, as duas correntes de
interpretação do rural podem ser compreendidas na perspectiva da modernização
ecológica ou na perspectiva da teoria crítica ou da modernidade reflexiva.
Sob o ponto de vista da teoria da modernização ecológica, uma
infra-estrutura técnico-econômica renovada por um industrialismo ecológico
fundamentaria o novo rural emergente.
Na perspectiva da teoria crítica da modernidade, a reconstrução do
ambiente rural constitui a escalada de um processo de reencantamento do mundo,
próprio da segunda fase da modernização (TOURAINE, 1994), ou da modernidade
reflexiva (GIDDENS, BECK, LASH, 1997).
A reconstrução do rural no Brasil não se resume à reorganização
técnica dos processos produtivos. O questionamento aos processos
homogeneizadores da produção, em função de suas conseqüências sociais e
ambientais, faz com que diversos atores sociais assumam posições críticas face
à desestruturação dos ecossistemas e aos contínuos processos de exclusão
social, de perda de identidade e massificação cultural. Paralelamente a esse
processo, desenvolve-se uma consciência crescente, no interior da sociedade,
dos riscos da tecnologia para a saúde humana e para o Bem Estar Social
(BECK,1997). Isto faz com que a sociedade passe a consumir produtos e serviços
que se aproximem de processos naturais e biológicos, tendo em vista possíveis
conseqüências apresentadas por produtos industriais como os alimentos
industrializados. É nesse contexto que hipoteticamente se poderia explicar o
aumento por demanda de produtos orgânicos oriundos de uma agricultura
ecológica.
Desta forma, dentre os vários temas relacionados com a questão
ambiental no meio rural, a reorganização da agricultura, via agroecologia,
parece ser um dos mais relevantes, considerando o seu sentido tanto para os
atores sociais rurais como para a moderna sociedade de risco. Assim é possível
afirmar que: se, para o consumidor, o consumo de produtos naturais representa
uma alternativa de preservação da saúde, para o agricultor, a agroecologia, em
expansão nesse momento, representa muito mais uma possibilidade de assegurar
sua reprodução social do que uma ação fruto de racionalidade ecológica
orientada por imperativos éticos de reconstrução de sistemas ecossociais.
A relação entre subsistência do agricultor e preservação
ambiental, no Brasil, parece alavancar processos técnico-naturais de produção,
o que não significa dizer que nesse processo não se forje atores sociais
movidos por uma consciência ambientalista. Se há uma preocupação em restaurar
processos produtivos que procuram gerir recursos naturais, é possível dizer que
a preocupação com meio ambiente se amplie e, dessa forma, outros aspectos
ambientais passem a ser considerados na reorganização da agricultura e do
espaço rural.9 A diversificação das explorações e das
atividades agrícolas, a conservação do solo e os cuidados com recursos hídricos
e florestais, e com a paisagem, não apenas fazem do rural um espaço
reorganizado de produção agrícola, como também um espaço de consumo ambiental.
O rural ambientalizado oferece, além de produtos, uma natureza reconstruída
própria para atividades turísticas, de lazer e outras, de mediação da sociedade
urbana e industrializada.
Os vários temas do ambiente rural, assim como do ambiente urbano,
do costeiro e outros, com a instituição dos Programas de Pós-Graduação em Meio Ambiente ,
passam a ser estudados sob a ótica da pesquisa interdisciplinar. Desta forma,
os quadros analíticos não se resumem às ciências sociais ou naturais, mas cada
área, em seu respectivo domínio, estabelece pontes de diálogo com as áreas
relacionadas aos temas definidos como objeto de investigação. A abordagem
interdisciplinar afirma-se como uma das mais promissoras para a compreensão de
um rural em cujo espaço ainda se desenvolve uma das atividades produtivas mais
próximos da natureza: a agricultura.
No que tange à abordagem das ciências sociais ou, mais
propriamente, da sociologia, pode-se afirmar que os estudos de questões
ambientais até agora realizados estão estreitamente relacionados com a sociologia
rural, havendo ainda uma predominância desta nas investigações dos diversos
temas agrários. Mas, à medida que a questão ambiental passa a ser considerada
na reconstrução do rural, as teorias ambientais passam a contribuir nas
análises das diversas dimensões dessa reconstrução.
A passagem de um quadro analítico para outro, nos estudos das
questões rurais, foi muito bem resumido no contexto da sociedade francesa por
MATHIEU E JOLLIVET (1989). No trabalho "Du Rural à L'environnement",
os autores reúnem uma coletânea de textos que trata de temas ambientais
diversos, na ótica de diferentes disciplinas, sugerindo um marco divisório na
abordagem dos estudos rurais franceses. Para o caso brasileiro, assume-se a
tese de que metodologicamente dois referenciais teóricos se complementam para
uma melhor compreensão do rural que ressurge "ambientalizado": a
sociologia rural e a sociologia ambiental. Por um lado, não se pode abdicar das
abordagens clássicas da sociologia rural, dada a especificidade e a heterogeneidade
social, ambiental e temporal do rural no Brasil. Ao mesmo tempo, negligenciar
as contribuições de teóricos contemporâneos pode nos ocultar a compreensão de
fenômenos de uma modernidade considerada como pós-industrial, crítica,
reflexiva, ou de risco, que no caso brasileiro se sobrepõe a um tempo moderno
ou até mesmo pré-moderno. Essas diferentes dimensões do real são relevantes não
apenas para compreender como o rural se reorganiza mas, igualmente, para
orientar atores sociais, organizações e instituições sociais e governamentais
na formulação de políticas de desenvolvimento que articulem dimensões do
ambiente e da sociedade.
2.3 CONCLUSÃO
Depois de
algumas investigações sobre a moral na sociedade humana e rural conclui que a
moral define o que é certo ou errado, justo e injusto, licito e ilícito,
permitindo e proibido. Determina acções e atitudes que devem ser adoptadas
pelas pessoas. Mas quem valida tais determinações e quais são os parâmetros
utilizados para dar credibilidade aos deveres morais? A resposta poderia ser
fácil; as colectividade. No entanto, cada coletividade comunga de ideais
diferentes, o que faz várias morais coexistir no interior das coletividades.
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